Na Mídia
12/11/2019

Artigo O Globo: Coringa, Friedman e outros vilões

O Globo

A atual polarização política no mundo ocidental é uma imposição da realidade econômica das pessoas.

O magnífico filme Coringa do diretor Todd Phillips é uma poderosa obra de arte que mostra que a polarização da política no mundo ocidental não está envelhecida, ultrapassada ou démodé conforme afirmam muitos políticos, jornalistas e analistas simpáticos à velha ordem.

Ela renasceu da combinação de três grandes fatores: a crescente perda de direitos por parte dos trabalhadores, a concentração de renda sem precedentes na história contemporânea e a austeridade fiscal que levou à precarização dos serviços públicos.

Depois de mais de 40 anos da ascensão do liberalismo monetarista do trio Friedman, Thatcher e Reagan – que gerou riqueza, mas gerou ainda mais desigualdade no mundo ocidental – os mais humildes e a classe média passaram a enxergar os políticos tradicionais da democracia liberal e da social-democracia (desmontada e cooptada por esse liberalismo na década de noventa) como meros capatazes de quem realmente detém o poder no planeta: uma pequena classe de bilionários liberais (na economia e nos costumes).

Há milhões de pessoas indignadas, outras tantas ressentidas, frustradas e muita, muita gente que simplesmente, não tem mais nada a perder. O clamor por mudanças profundas é latente. Em todo o mundo ocidental, explodem revoltas e movimentos populares contra esse modelo que permanentemente drena recursos para os mais ricos, esmaga a classe média e deixa o povo cada vez mais pobre e vulnerável.

Para mudar o quadro atual, há quem veja resposta em lideranças nacionalistas, xenófobas e ultraconservadoras nos costumes. Para essas pessoas, a degradação da condição de vida do cidadão comum tem a ver com a integração econômica internacional, com a perda de empregos para imigrantes e trabalhadores de outros países e por fim, com o fortalecimento de pautas identitárias – percebidas por essas pessoas como uma ameaça à sua definição de família e aos seus valores religiosos.

Por outro lado, há quem veja resposta em lideranças que vocalizam o discurso da injustiça social, da luta de classes e do enfrentamento à desigualdade. Para essas pessoas, o sofrimento dos mais humildes decorre da extrema concentração de riqueza e poder na mão dos bilionários, da ganância desmedida de grandes corporações e instituições financeiras e da ausência de regulação por parte do estado para impedir o abuso do poder econômico sobre trabalhadores e consumidores.

O fato é que aqueles que foram excluídos do processo de acumulação de riquezas nas últimas décadas, não conseguem mais enxergar resposta nas lideranças do liberalismo monetarista ou da social-democracia envergonhada.

A cúpula do establishment econômico mundial já dá sinais que entendeu que a corda esticou demais. São cada vez mais frequentes as declarações feitas por bilionários e grandes capitalistas nesse sentido – tudo para não perderem o controle do inevitável processo de redistribuição da riqueza gerada nos últimos quarenta anos. Eles já aceitam entregar alguns anéis, mas, talvez isso não seja suficiente nas atuais circunstâncias.

Precisarão entregar mais do que alguns anéis. Se não o fizerem, acabarão tendo que fazer roleta russa com os autocratas de inspiração fascista – ficando desse modo, também sujeitos ao fim do estado de direito e aos riscos decorrentes da instabilidade de quem comanda esse tipo de regime.

Apenas as lideranças populares e democráticas alinhadas aos ideais de construção de um estado de bem-estar social forte – que promova uma política perene de distribuição de renda e de valorização da mão-de-obra e que seja capaz de regular o mercado para impedir o abuso do poder econômico sobre trabalhadores e consumidores – serão capazes de mudar o atual modelo econômico de forma pacífica e sustentável.

Foi assim que os EUA superaram a grande depressão dos anos trinta. Foi assim que a Europa renasceu após a Segunda Grande Guerra Mundial. Foi assim que os países nórdicos alcançaram os maiores indicadores de desenvolvimento humano e de felicidade no mundo. É assim que poderemos voltar a melhorar a vida de milhões de pessoas.

Mas, se o establishment econômico mundial não tiver essa compreensão e vier mais uma vez, com soluções paliativas ou de redução de danos, o nível de radicalismo e de polarização política escalará ainda mais e o mundo, infelizmente, acabará dividido entre o terror fascista e o terror jacobino. Haverá choro e ranger de dentes.

O filme Coringa é uma espécie de profecia sobre o que o mundo pode enfrentar nos próximos anos se aqueles que ainda detém o poder, não perceberem que para a grande maioria da população, a música That’s Life já deixou de funcionar há algum tempo – mesmo quando lindamente cantada por Frank Sinatra.

Marcello Faulhaber é consultor e estrategista político. É mestre (MSc.) em Economia Política pela London School of Economics.

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